Os cristãos acreditam que Jesus é, segundo João 1,14, a Palavra de Deus feita carne, mas raramente perguntam a que classe social ou econômica essa carne pertencia. Diante da fama adulta de Jesus, os vizinhos em sua aldeia nativa de Nazaré fazem uma dupla pergunta, segundo Marcos 6,3:
“Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?”
Mateus 13,55-56 ...:
“Não é ele o filho do carpinteiro? Não se chama a mãe dele Maria e os seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E as suas irmãs não vivem todas entre nós? Donde então lhe vem todas estas coisas?"
...
Se lemos “carpinteiro” com Marcos ou “filho do carpinteiro” com Mateus, isto pouca diferença faz em um mundo em que os filhos geralmente seguiam as profissões dos pais. Mas qual era exatamente a classe social ou econômica de um tektõn, aqui traduzido como “carpinteiro”? O problema imediato é evitar a interpretação do termo como carpinteiro em termos modernos como qualificado, bem pago e respeitado membro da classe média. Mas o único modo de fazer isto efetivamente é disciplinar nossa imaginação com história social e antropologia intercultural.
Caminho Nobre
Ramsay MacMullen observou que a linhagem social de uma pessoa podia ser facilmente conhecida no mundo greco-romano e que uma referência como “carpinteiro” indicava status de classe inferior (1). No fim de seu livro, ele apresenta um “léxico de Esnobismos”, com termos usados por autores greco-romanos cultos e portanto da classe superior para indicar seu preconceito contra pessoas incultas e portanto de classe inferior. Entre estes termos está tektõn, ou carpinteiro, o mesmo termo usado para Jesus em Marcos 6,3 e para José em Mateus 13,55. Não se poderia, naturalmente, sequer supor que os escárnios da classe alta ditassem como as classes inferiores de fato se sentiam. Mas, em geral, a grande divisão no mundo greco-romano era entre aqueles que tinham que trabalhar com as mãos e aqueles que não.
Um estudo anterior de Gerhard Lenski ajuda a situar tudo isto em um arcabouço de referência intercultural mais amplo(2). Ele divide as sociedades humanas, por tecnologia e ecologia, em sociedades coletoras e caçadoras, horticultoras simples, horticultoras avançadas, agrárias e industriais. O império romano era uma sociedade agrária, caracterizada pela forja de arados de ferro, arreamento de tração animal e uso de roda e vela para transportar produtos. Caracterizava também por um abismo que separava as classes altas e baixas. De um lado desta grande divisão estavam os Governantes, que constituíam 1% da população, mas possuíam pelo menos metade da terra. Também deste lado estavam três outras classes, os Sacerdotes: que podiam possuir até 15% da terra; os Arrendatários, que iam de generais a burocratas especializados; e os Mercadores, que provavelmente ascendiam a partir das classes baixas, mas que podiam chegar a ter considerável riqueza e mesmo algum poder político. Do outro lado estavam, acima de tudo, os Camponeses – essa vasta maioria da população de cuja colheita cerca de dois terços sustentavam as classes altas. Se tivessem sorte, viviam no nível da subsistência, apenas em condições de sustentar a família, animais e obrigações sociais, e ainda tinham o suficiente para o suprimento de semente do ano seguinte. Se não tivessem sorte, a seca, a dívida, a doença ou a morte expulsavam-nos de sua própria terra, para a meia, o arrendamento ou ainda pior. Em seguida vem os Artesãos, cerca de 5% da população, abaixo dos Camponeses em termos de classe social porque em geral eram recrutados e reabastecidos entre seus membros desalojados. Abaixo deles estavam as classes Degradadas e Dispensáveis – as primeiras com origens, ocupações ou condições que as tornavam rejeitadas; as segundas, talvez até 10% da população, iam de mendigos e foras-da-lei até ladrões, trabalhadores diaristas e escravos. Esses Dispensáveis existiam, como este terrível título sugere, porque, a despeito da mortalidade e da doença, da guerra e da fome, as classes agrárias em geral tinham mais classes baixas do que as classes altas julgavam lucrativo empregar. Os Dispensáveis eram, em outras palavras, uma necessidade sistêmica.
Se Jesus era carpinteiro, portanto, ele pertencia à classe dos Artesãos, esse grupo empurrado para o perigoso espaço entre os Camponeses e os Degradados ou Dispensáveis. ...
(1) Ramsay MacMullen, Roman Social Relations: 50 B. C. to A. D. 384 (New Haven, CT, and Londres Yale Univ. Press, 1974) pp. 17-18, 107-108, 139-140, 198 nota82
(2) Gerhard Lenski, Power and Privilege: A Theory of Social Stratification (Nova Iorque: McGraw-Hill, 1966), pp.189-296.
(Fonte: rmesquita.com.br)
Do livro: Jesus, Uma Biografia Revolucionária pág.39-41
John Dominic Crossan
Editora Imago
“Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?”
Mateus 13,55-56 ...:
“Não é ele o filho do carpinteiro? Não se chama a mãe dele Maria e os seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E as suas irmãs não vivem todas entre nós? Donde então lhe vem todas estas coisas?"
...
Se lemos “carpinteiro” com Marcos ou “filho do carpinteiro” com Mateus, isto pouca diferença faz em um mundo em que os filhos geralmente seguiam as profissões dos pais. Mas qual era exatamente a classe social ou econômica de um tektõn, aqui traduzido como “carpinteiro”? O problema imediato é evitar a interpretação do termo como carpinteiro em termos modernos como qualificado, bem pago e respeitado membro da classe média. Mas o único modo de fazer isto efetivamente é disciplinar nossa imaginação com história social e antropologia intercultural.
Caminho Nobre
Ramsay MacMullen observou que a linhagem social de uma pessoa podia ser facilmente conhecida no mundo greco-romano e que uma referência como “carpinteiro” indicava status de classe inferior (1). No fim de seu livro, ele apresenta um “léxico de Esnobismos”, com termos usados por autores greco-romanos cultos e portanto da classe superior para indicar seu preconceito contra pessoas incultas e portanto de classe inferior. Entre estes termos está tektõn, ou carpinteiro, o mesmo termo usado para Jesus em Marcos 6,3 e para José em Mateus 13,55. Não se poderia, naturalmente, sequer supor que os escárnios da classe alta ditassem como as classes inferiores de fato se sentiam. Mas, em geral, a grande divisão no mundo greco-romano era entre aqueles que tinham que trabalhar com as mãos e aqueles que não.
Um estudo anterior de Gerhard Lenski ajuda a situar tudo isto em um arcabouço de referência intercultural mais amplo(2). Ele divide as sociedades humanas, por tecnologia e ecologia, em sociedades coletoras e caçadoras, horticultoras simples, horticultoras avançadas, agrárias e industriais. O império romano era uma sociedade agrária, caracterizada pela forja de arados de ferro, arreamento de tração animal e uso de roda e vela para transportar produtos. Caracterizava também por um abismo que separava as classes altas e baixas. De um lado desta grande divisão estavam os Governantes, que constituíam 1% da população, mas possuíam pelo menos metade da terra. Também deste lado estavam três outras classes, os Sacerdotes: que podiam possuir até 15% da terra; os Arrendatários, que iam de generais a burocratas especializados; e os Mercadores, que provavelmente ascendiam a partir das classes baixas, mas que podiam chegar a ter considerável riqueza e mesmo algum poder político. Do outro lado estavam, acima de tudo, os Camponeses – essa vasta maioria da população de cuja colheita cerca de dois terços sustentavam as classes altas. Se tivessem sorte, viviam no nível da subsistência, apenas em condições de sustentar a família, animais e obrigações sociais, e ainda tinham o suficiente para o suprimento de semente do ano seguinte. Se não tivessem sorte, a seca, a dívida, a doença ou a morte expulsavam-nos de sua própria terra, para a meia, o arrendamento ou ainda pior. Em seguida vem os Artesãos, cerca de 5% da população, abaixo dos Camponeses em termos de classe social porque em geral eram recrutados e reabastecidos entre seus membros desalojados. Abaixo deles estavam as classes Degradadas e Dispensáveis – as primeiras com origens, ocupações ou condições que as tornavam rejeitadas; as segundas, talvez até 10% da população, iam de mendigos e foras-da-lei até ladrões, trabalhadores diaristas e escravos. Esses Dispensáveis existiam, como este terrível título sugere, porque, a despeito da mortalidade e da doença, da guerra e da fome, as classes agrárias em geral tinham mais classes baixas do que as classes altas julgavam lucrativo empregar. Os Dispensáveis eram, em outras palavras, uma necessidade sistêmica.
Se Jesus era carpinteiro, portanto, ele pertencia à classe dos Artesãos, esse grupo empurrado para o perigoso espaço entre os Camponeses e os Degradados ou Dispensáveis. ...
(1) Ramsay MacMullen, Roman Social Relations: 50 B. C. to A. D. 384 (New Haven, CT, and Londres Yale Univ. Press, 1974) pp. 17-18, 107-108, 139-140, 198 nota82
(2) Gerhard Lenski, Power and Privilege: A Theory of Social Stratification (Nova Iorque: McGraw-Hill, 1966), pp.189-296.
(Fonte: rmesquita.com.br)
Do livro: Jesus, Uma Biografia Revolucionária pág.39-41
John Dominic Crossan
Editora Imago
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