O aborto cirúrgico dificilmente era possível antes do desenvolvimento das técnicas modernas da medicina. Nos tempos antigos os fetos só eram mortos no útero quando suas mães faleciam. Exemplo disso é Amós 1.13: "Assim diz o SENHOR: 'Por três transgressões de Amom e ainda mais por quatro, não anularei o castigo. Porque rasgou ao meio às grávidas de Gileade, a fim de ampliar as suas fronteiras". Todavia, agora que a Suprema Corte dos Estados Unidos questionou a posição humana de um feto no ventre até que chegue a um estágio avançado de gestação, torna-se essencial que estabeleçamos a partir das Escrituras o ponto de vista de Deus sobre esse assunto. Será que Deus considera, o feto, em qualquer etapa, um ser humano, de tal maneira que lhe tirar a vida pode ser considerado assassinato?

Salmos 139.13 indica de modo definitivo que a consideração especial de Deus pelo feto começa a partir do instante da concepção. Assim diz o salmista: "Tu criaste o íntimo do meu ser e me teceste no ventre de minha mãe". O versículo 16 prossegue: "Os teus olhos viram o meu embrião; todos os dias determinados para mim foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir". É reconfortante saber que, embora muitos embriões ou fetos sejam abortados deliberadamente, todos os anos, por todo o mundo, Deus tem cuidado do ser ainda informe, tanto quanto vela pelos que já nasceram. O Senhor, por ter ele próprio determinado, conhece os códigos genéticos de cada um, e traçou um plano definido para cada vida (de acordo com o v. 16).

Em Jeremias 1.5, diz o Senhor ao jovem profeta no limiar de sua carreira: "Antes de formá-lo no ventre eu o escolhi; antes de você nascer eu o separei e o designei profeta às nações". É certo que essa passagem implica que Deus conhecia esse menino antes ainda de ele ter sido concebido no ventre de sua mãe. Parece que todos os seres humanos têm sua identidade na mente de Deus, a qual foi estabelecida "desde a eternidade" — muito antes da concepção do feto. A segunda lição desse versículo é que o próprio Deus é quem forma o embrião e governa e controla todos os processos "naturais" que redundam no milagre da vida humana. Em terceiro lugar, Deus tem um plano definido para nós, um propósito para nossa vida, de modo que cada pessoa realmente é importante para Deus. Portanto, todo aquele que tirar a vida de qualquer ser humano, em qualquer estágio de sua vida, deverá prestar contas a Deus. "Quem derramar sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado; porque a imagem de Deus foi o homem criado." (Gn 9.6). Quando é que um embrião começa a ser uma criatura feita à imagem de Deus? A partir do momento da concepção, no útero, dizem as Escrituras. Portanto, Deus vai requerer o sangue de um feto das mãos de seu assassino, seja o que pratica o aborto um médico, seja um curioso, sem preparo profissional.
Em Isaías 49.1, menciona-se o servo do Senhor que diz: "... o SENHOR me chamou; desde o meu nascimento ele fez menção de meu nome". (Is 49.1) Isso suscita uma pergunta interessante que a Corte Suprema dos Estados Unidos da América deve responder: Em que ponto da gestação de Jesus Cristo no ventre de Maria, o Senhor começou a ser o Filho de Deus? Em que momento entre sua concepção e seu nascimento um aborto seria equivalente a um sacrilégio hediondo? Depois de três meses? De três dias? De três minutos? Disse o anjo a Maria por ocasião da Anunciação: "O Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Altíssimo o cobrirá com a sua sombra. Assim, aquele que há de nascer será chamado Santo, Filho de Deus" (Lc 1.35). Quando foi que ocorreu o milagre da encarnação? Teria sido no exato momento da concepção?

Lucas 1.15 enfatiza algo semelhante a respeito de João Batista: "Pois será grande aos olhos do Senhor [...] será cheio do Espírito Santo desde antes do seu nascimento". (Lc 1.15) Não somos informados a respeito do momento ou estágio preciso da gravidez de Isabel, mulher do sacerdote Zacarias, em que o maior de todos os profetas (Mt 11.11) foi cheio do Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade; mas pode ter sido antes do momento estabelecido pela Corte Suprema como sendo "viável". O que sabemos com certeza é que depois de seis meses de gestação a mãe de João, Isabel, sentiu que a criança saltou em seu ventre quando Maria entrou no recinto onde ela se achava (Lc 1.41, 44), pois clamou com alegria, depois de sua prima havê-la saudado: "Logo que a sua saudação chegou aos meus ouvidos". A terceira pessoa da Trindade respondeu com alegria, quando a futura mãe de Jesus Cristo, a segunda Pessoa, entrou naquele recinto. Que felicidade a da raça humana, porque nenhum bisturi do aborto sequer chegou perto desses dois embriões!

Nos primeiros anos da atual controvérsia a respeito do aborto, costumava dizerse, até mesmo entre alguns eruditos evangélicos, que Êxodo 21.22-25 informa que a morte de um feto antes de nascer envolvia menor grau de culpa que o assassinato de uma criança. Tal idéia se baseava numa tradução infeliz do original hebraico. Até mesmo o texto traduzido pela NASB perpetua o engano estabelecido pela KJV: "Se homens brigarem, e ferirem mulher grávida, e forem causa de que aborte, porém sem maior dano, aquele que feriu será obrigado a indenizar segundo o que lhe exigir o marido da mulher; e pagará como os juízes lhe determinarem. Mas se houver dano grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé" etc.

Em nota adicional, a NASB reconhece que weyāṣe ’û yelādeyāh ("de modo que tenha um aborto") literalmente significa "sua criança saia". É usada aqui a mesma palavra hebraica que se emprega para "criança" desde a infância até a idade de doze anos: yeled no singular, yelādîm no plural. (O plural é usado aqui porque a mulher podia estar grávida de gêmeos ao ser atingida.) O golpe em seu útero poderia fazer com que seu filho (ou filhos) se tornasse abortivo e saísse do útero vivo (se ela tivesse essa boa fortuna).

A segunda observação importante é que as palavras que aparecem na RA: "maior" e "dano grave" inseridas no texto acima, não aparecem no texto hebraico, e tampouco — na opinião deste autor — estão implícitas. O original é perfeitamente claro: "e se não houver dano" (welō’ yihyeh ’āsôn). Assim, a sentença toda deveria ser traduzida desta forma: "E quando homens brigarem e baterem numa mulher grávida [ou 'esposa'] e suas crianças saírem, e se não houver dano, ele certamente será multado, segundo o marido da mulher lhe impuser, e ele dará [ou 'pagará' ] na presença dos juízes; todavia, se houver dano, tu pagarás uma vida por uma vida [nepeš taḥaṯ nāpeš]".

Não existe aqui ambigüidade. Exige-se que se houver dano à mãe ou aos filhos, o marido será ressarcido mediante prejuízo semelhante ao culpado. Se envolver a existência (nepeš) do bebê prematuro, o agressor deverá pagar com a própria vida. Não existe uma situação para o feto de segunda categoria, de acordo com essa lei; o embrião era vingado como se fosse uma criança que normalmente houvesse nascido ou uma pessoa de mais idade: uma vida por uma vida. Todavia, se o dano fosse de menor monta, porém não suficientemente sério de modo que exigisse uma retribuição semelhante ao ofensor, este podia oferecer uma compensação por danos materiais, segundo a importância que o marido da mulher ferida prescrevesse. Indenizações monetárias em geral eram exigidas quando a criança nascia prematuramente, visto que isso requeriria despesas extras com médico e cuidados especiais.

Portanto, se tirar a vida de um feto deve ser classificado como homicídio — conforme a Bíblia deixa bem claro —, levanta-se a questão sobre se esse assassinato tem alguma justificativa. É claro que não estamos falando sobre a imposição da justiça pública contra criminosos que foram oficialmente julgados e condenados por crimes como o de adorar falsos deuses, realizar sacrifícios de crianças, bruxaria, blasfemar contra Iavé, assassinato em primeiro grau, adultério, incesto (a aplicação da pena de morte por tais crimes se fazia por apedrejamento, pela espada ou pela fogueira [cf. Lv 20.2-5, 14, 20, 27; 24.15-17; Dt 13.1-5, 15; 17.2-7; 22.22-24]). Essas medidas punitivas devem ser consideradas execução de pena de morte, e não homicídio legalizado. Todavia, no caso de autodefesa ou de defesa do domicílio contra um ladrão que entra à noite para roubar (Êx 22.2), tirar a vida de um ser humano era justificável, pois impedi a injustiças maiores ainda, como permitir que um criminoso continuasse a assassinar ou a machucar pessoas inocentes.

Não existe provisão específica na Bíblia para o problema que surge quando o desenvolvimento do feto no útero significa séria ameaça à vida da mãe. Poder-se-ia concluir razoavelmente que uma existência real tem mais valor intrínseco que uma vida potencial — de modo especial quando o bem-estar de outros filhos está em jogo.

Na maior parte dos casos, ocorre que o bebê é tão comprometido fisicamente que não conseguiria viver uma existência significativa, pois morre ao nascer ou logo depois. No entanto, alguns jamais alcançam um nível de racionalidade humana, porém sobrevivem durante alguns anos. Diferentemente de nossos antepassados, hoje dispomos de técnicas que podem advertir o obstetra ou a futura mamãe de que o útero contém um fenômeno da natureza; a família e de modo especial os pais receberão uma verdadeira punhalada permanente no coração, caso aquele feto continue a se desenvolver e a criança venha a nascer e sobreviva. É concebível o caso de permitir-se a cessação da vida mediante aborto. Todavia, temos aqui um procedimento dúbio, que só se pode admitir caso a má formação fique comprovada fora de qualquer suspeita. Em geral, é melhor deixar que a "natureza" (i.e., a boa providência de Deus) prossiga em seu curso.

No caso da concepção involuntária, resultante de rapto, estupro, incesto etc, fica fora de questão a injustiça cometida contra a mulher assim engravidada; todavia, é mais duvidoso se o crime praticado contra a criança — a extinção de sua vida mediante o aborto — não é maior ainda. O trauma psicológico da mãe pode ser severo demais, principalmente quando se tem de lidar com o destino de uma pessoa inocente, que não pode ser culpada pelo crime, pois não tem consciência de culpa pessoal pelo que aconteceu. O problema deve ser resolvido mediante a fé submissa e a confiança total em Deus, que concede habilidade para se resolver a situação criada com a chegada daquele bebê. Caso a mãe não se sinta desejosa de criá-lo, há muitos casais que teriam imensa satisfação em adotá-lo e educá-lo como seu próprio filho.

No caso de incesto, a adoção é quase obrigatória, pois é praticamente impossível que um filho educado pelo seu avô, tio ou outro parente conserve algum tipo de respeito, caso venha a descobrir a verdade, mais tarde. No entanto, essa conseqüência trágica pode ser evitada mediante a adoção, sendo muito questionável se o aborto seria justificável até mesmo sob uma circunstância tão trágica e extremada como essa. O direito à vida deve ser a principal consideração em todos os casos. (Talvez devamos salientar que, a respeito deste assunto, Gn 19.36-38 registra que os ancestrais das nações moabita e amonita nasceram, ambos, de um relacionamento incestuoso — embora, nesse caso especial, o pai, Ló, não tenha sido o responsável pelo crime cometido.)

Extraído da "Encicloédia de Temas Bíblicos", por Gleason Aecher

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