Esta argumentação, entretanto, não se aproxima das questões fundamentais envolvendo a microcefalia e outras deficiências mentais: no texto referido, o termo microcefalia não é sequer mencionado. Constitui-se uma solução técnica e pragmática, uma redução que despreza a totalidade dos fatores envolvidos. Ela ignora a possibilidade de se emergir uma resposta madura dos deficientes e seus familiares à fragilidade da vida.
O presente artigo não nasce de uma visão idealista alheia à experiência das pessoas. Como psicólogos, lidamos diariamente com o sofrimento humano e as realidades da vulnerabilidade social e a deficiência. Identificamo-nos com pessoas que não conseguem descobrir um caminho em meio à dor, sentem-se desesperadas e se angustiam pela falta de suporte. Entretanto, temos visto deficientes, mães e familiares aprendendo a reconhecer a força da vida em meio à fraqueza, descobrindo um horizonte grande e cheio de possibilidades, mesmo em meio aos limites e frustrações. Por isto cremos que o debate não deve focar-se no aborto: é preciso vislumbrar possibilidades de uma resposta que não nega a deficiência, mas que a inclui, mesmo sendo um posicionamento na fragilidade. Neste artigo, propomos que a concepção cristã da “força na fraqueza” gera um novo olhar à vulnerabilidade e deficiência; esta visão permite uma resposta a partir da fragilidade (e não contra ela) nos abrindo para a relação com os outros e com Deus.
Apesar de reconhecermos a necessidade de uma abordagem multidisciplinar pela complexidade dos desafios éticos contemporâneos, nosso enfoque é uma contribuição específica a um debate amplo: uma resposta cristã nutrida pelas experiências de acolhimento do sofrimento humano no trabalho psicológico.
O presente escondido da deficiência mental
Vivemos em momento histórico que despreza o fraco e a deficiência mental. Através dos avanços tecnológicos do século 21, a neurociência tem pesquisado o aumento da capacidade do cérebro. Diante dos projetos de “melhora humana”, o presente século tem aversão à deficiência cognitiva. Sem nos darmos conta, criamos nossos filhos para serem bons competidores no mercado de trabalho, e não os queremos limitados por deficiências de inteligência. A consequência é uma sociedade que exclui, inferioriza e nega o valor e o potencial do deficiente.
Apesar de muitas vezes serem vistas como fardos, pessoas com deficiência mental carregam um presente escondido. A microcefalia ou a síndrome de Down podem se tornar recursos pelo quais compreendemos que a capacidade da cabeça não determina a grandeza do coração. Nesta infinidade de possibilidades que a vida apresenta, deficientes mentais podem responder de maneira madura aos seus relacionamentos e na sua vinculação com o mundo. E mesmo naqueles em que o retardo mental é severo, o presente escondido permanece: por se comunicarem prioritariamente em afeto e não entrarem na mentalidade da performance, da capacidade cognitiva que valoriza a produtividade, eles subvertem a lógica desumanizadora que despreza a vulnerabilidade. Os deficientes tem uma capacidade profunda de receber afeto, e assim compreendem o amor incondicional de Deus, que não se baseia no mérito. Eles nos ensinam a ver a fraqueza como graça, e a perseverar sem desprezar a deficiência, mas acolhe-la como um dom.
A necessidade da afirmação da potencialidade do deficiente mental não exclui os limites e as impossibilidades. Porém ela nos instiga a pensar que a vulnerabilidade carrega uma espera. Vulnerabilidade significa que a vida não está programada, permanece aberta e precisa ser cuidada. As famílias de crianças com deficiências tem uma oportunidade de descobrirem o mistério do amor nascido na fraqueza.
Temos prestado um desserviço como cristãos ao encorajar, sem qualquer reflexão, a lógica da vitória/cura sobre o sofrimento, sem atentar para as questões da vulnerabilidade, da limitação e principalmente do Deus que nos sustenta de maneira constante enquanto convivemos com a dor, nos trazendo cura para fragilidades que não conseguimos “nomear”. Nos esquecemos de que o milagre mais importante é Deus fazer brotar em nós um amor incondicional e doador pelos filhos nas suas deficiências.
A pessoa como um dom relacional e o desafio de uma vida não nascida
O conceito de “pessoa” está no centro dos desafios éticos atuais. Na tradição ocidental, enfatizou-se “pessoa” ora como alguém dotado de capacidade cognitiva-racional, um indivíduo independente; ora a partir da relação, um ser presenteado por um outro. No caso da permissão para o aborto no caso de anencefalia, concedida pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, o ministro Marco Aurélio Mello utilizou a concepção de pessoa a partir da capacidade cognitiva, em moldes jurídicos (sujeito de direitos), indivíduos produtivos que participam da vida social: “não há possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica em momento posterior. O anencéfalo jamais se transformará em uma pessoa.” Diante dos debates atuais, é necessário redescobrir a tradição da segunda concepção, a pessoa humana como um presente relacional. Na visão cristã, o conceito de pessoa inclui a capacidade racional, mas vai além dela: na Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo são pessoas, no qual um é para o outro doador, o receptor e o presente.
O conceito de pessoa pode ser compreendido a partir da relação, pois até mesmo uma criança com poucos instantes de vida já incide sobre a família e a marca. Sua existência, mesmo intrauterina, já é um acontecimento que desperta nos pais a vinculação e a doação afetiva. O livro de Sarah Williams (“The Shaming of the Strong: the challenge of an unborn life”) é o testemunho pessoal da Sarah sobre sua terceira gestação, de sua filha que foi diagnosticada com uma “patologia incompatível com a vida”. Ela foi aconselhada a abortar (por todos os médicos), mas optou por levar a gestação até o final. A bebê viveu até o final da gestação, mas nasceu morta. Sarah descreve todo o processo, gestação, nomeação da criança, papel dela na constituição familiar e o turbilhão de sofrimento, sentimentos e transformações que ocorreram em sua família e contextos relacionais mais amplos. “Mas Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes”. (1 Coríntios 1.27)
Durante a gestação, Sarah meditou por dois meses no Salmo 139. “Tu viste o meu embrião; os Teus olhos me viram substância ainda informe, quando no oculto fui formado” diz o salmista.
Sarah escreve:
“Se este texto é verdade, então Deus sonhou e amou minha filha como sugere o versículo. Isso tem implicações profundas sobre meu conceito de ‘normalidade’ e principalmente para meu papel de mãe, minha relação com Deus e com minha filha. Eu queria um bebê para segurar, uma criança para brincar e ensinar, para estar de acordo com meus sonhos e projeto de família e preencher algumas das minhas ambições. Eu não queria um bebê deformado e certamente não queria um bebê morto. Deus começou a me desafiar: e se a definição de vida de Deus é diferente da minha? E se o destino deste bebê é passar toda a eternidade com Deus? E se os dias que Ele ordenou para ela não incluírem um aniversário? Será que estes dias foram menos preciosos ou sem significado? E se meu papel na relação com ela, de mãe e filha, é cooperar para que os sonhos de Deus para esta criança sejam concretizados? E se o trabalho que Deus me deu foi o de nutrir sua vida e prepará-la para o céu, mantendo uma postura de oração e adoração ao Pai para familiarizá-la com a doce presença do Pai do céu, para onde ela iria em breve?” 1
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