Não se pode negar que Cântico dos Cânticos (ou Cantares de Salomão, como também é chamado) é um livro muito diferente do resto da Bíblia. Seu tema não é doutrina, mas sentimento íntimo — o mais excitante e elevado de todos, o amor. O amor é o que une duas almas, constituindo uma unidade maior, numa sociedade orgânica que reage ao amor de Deus pelos seus filhos e ao de Cristo pela sua esposa escolhida, a Igreja. A importância de Cântico dos Cânticos é que se trata de um livro a respeito do amor, de modo especial o existente entre marido e mulher, como paradigma do que há entre o Salvador e seu povo redimido.
As Escrituras se referem muitas vezes a esse casamento característico, sagrado e tipológico. Em Isaías 54.4-6, o Senhor se dirige a seu povo Israel, pecador, desviado e tão punido, em termos próprios de um marido magoado que graciosamente perdoa a esposa: "Não tenha medo; você não sofrerá vergonha [...] Você esquecerá não se lembrará mais da humilhação de sua viuvez [i.e., o período da alienação de Israel, separado de Iavé, na Babilônia, durante o cativeiro]. Pois o seu Criador é o seu marido; o Senhor dos Exércitos é o seu nome; e o Santo de Israel é o teu Redentor [...] O SENHOR chamará você de volta como se fosse uma mulher abandonada e aflita de espírito, uma mulher que se casou nova apenas para ser rejeitada, diz o seu Deus." Is 54.4-6. Em outras palavras, o compromisso forte e emocional de um bom marido para com sua mulher, a quem ele ama, apresenta semelhança (embora de modo frágil e finito) com o amor eterno e inexaurível que Deus dedica a seus redimidos (cf. Ef 3.18, 19). Essa virtude é expressa com maior profundidade na passagem clássica de Efésios 5.21-27: Sujeitem-se uns aos outros, por temor a Cristo. Mulheres, sujeite-se cada uma a seu marido, como ao Senhor, pois o marido é o cabeça da mulher como também Cristo é o cabeça da Igreja, que é o seu corpo do qual ele é o Salvador [...] Maridos, ame cada um a sua mulher, assim como Cristo amou a igreja e entregou-se por ela para santificá-la, tendo-a purificado pelo lavar da água mediante a palavra, e para apresentá-la a si mesmo como igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou coisa semelhante, mas santa e inculpável.
É dessa perspectiva, portanto, que contemplamos Cânticos dos Cânticos e suas imagens líricas, emocionais, um poema composto a fim de despertar sentimentos de uma sinfonia do amor criada por um gênio da música e executada por uma orquestra magnífica. Temos aí a descrição comovente do romance arrebatador de Salomão com uma jovem humilde, extremamente linda, vinda do campo, talvez de Suném, no território de Issacar (a LXX traduz "sulamita", a palavra que está em 6.13, como sounamitis, ou "sunamita"). É possível que originalmente ele a tenha observado vestida como uma pastora e que a houvesse conhecido quando a moça cuidava do rebanho em algum campo das redondezas.
É bem possível que no início de seu reinado, pelo menos, Salomão tirasse algum tempo, interrompendo os deveres oficiais para desfrutar de um descanso no campo (aparentemente numa propriedade em Baal-Hamom - 8.11). Ele preferia cuidar de ovelhas, vinhas e flores, em vez de desejar golfe, pesca, barcos ou tênis (que fazem a delícia dos modernos executivos). Assim, ele teria passado algumas semanas fora de Jerusalém, incógnito. (Alguns eruditos preferem apresentar aqui um jovem camponês apaixonado, cuja profissão era o pastoreio de ovelhas, que viria a ser o rival bem-sucedido do rei, ganhando o afeto da moça; todavia, é bastante difícil sustentar essa ficção, por causa do texto em si. É muito improvável que Salomão, o autor do texto, o tivesse escrito como memorial de sua derrota amorosa.)
Quando Salomão estabeleceu uma amizade com a jovem pastora, viu-se inesperadamente apaixonado por ela. E parece que ela também se apaixonou por ele, antes de descobrir-lhe a verdadeira identidade. Ao tomar-lhe a mão em casamento, ele levou-a consigo para Jerusalém, para o esplendor de sua corte. Lá essa jovem enfrentou sessenta outras esposas e oitenta concubinas que já constituíam o harém do marido. Foi naquele palácio que ela se sentiu diminuída, por causa de sua pele morena, fora de moda, enegrecida pelo sol, em razão de sua vida ao ar livre e das atividades a que seus irmãos a obrigaram (1.6).
As memórias que Salomão escreveu acerca desse episódio profundamente significativo de sua vida, no qual ele experimentou o mais autêntico relacionamento de amor que já conhecera, ficaram registradas para nós de modo espantosamente belo; ele deveras foi um poeta talentoso. Embora esse polígamo mal orientado se houvesse dedicado de corpo e alma à auto-indulgência, motivo pelo qual jamais alcançou as sublimes alturas a que essa jovem encantadora tentou elevá-lo, Salomão nos deixou essa expressão inigualável da glória de um amor humano que reflete o incomparável amor de Deus. "Nem muitas águas conseguem apagar o amor; os rios não conseguem leválo na correnteza. Se alguém oferecesse todas as riquezas da sua casa para adquirir o amor, seria totalmente desprezado". (8.7).
O poeta não seguiu uma ordem estrita, nem cronológica, ao produzir seu poema; antes, percebe-se a técnica emocional do clamor violento da consciência envolvendo os oito capítulos do livro. Lembramo-nos da técnica de flashback de certas novelas televisivas ao ler a história desse amor: cenas do passado freqüentemente interrompendo o fluxo do presente. Se mantivermos em mente as linhas mestras e as pressuposições delineadas acima, os elementos desse romance se entrosam de modo coerente e convincente. Tente outra vez, caro leitor: é possível que você acabe gostando! E, por favor, tenha em mente, quando estiver lendo passagens como 4.1 -5 e 7.1-9 que quando uma mulher, quer seja bonita, quer não, ama ao Senhor, repete-se aí a obra-prima de Deus, o supremo artista. A beleza física da sulamita apenas simboliza, de modo bem adequado, a beleza espiritual do templo do Espírito Santo, a noiva de Cristo, a Igreja. Todo crente se transforma na habitação da terceira pessoa da Trindade. O ponto de vista da jovem, como mulher, encontra expressão igualmente eloqüente em 2.3-6 e 5.10-16, ainda que o leitor do sexo masculino possa não se sentir emocionalmente sintonizado para reagir a tais passagens da forma adequada, tal qual uma mulher reagiria.
Cântico dos Cânticos serve de lembrete a todos os crentes de que Deus se regozija em sua obra eterna e sabe como revesti-la de emocionante beleza, merecedora da mais completa apreciação. No entanto, junto com nossa fervorosa devoção que reconhece tudo o que Deus fez de modo tão lindo — uma paisagem, o céu, o mar, as árvores majestosas, as flores encantadoras e até mesmo as glórias e encantos passageiros do amor humano — jamais devemos nos esquecer de dar toda honra e louvor aquele que os fez. Precisamos sempre exaltar o Criador acima de sua criação e de suas criaturas.
As Escrituras se referem muitas vezes a esse casamento característico, sagrado e tipológico. Em Isaías 54.4-6, o Senhor se dirige a seu povo Israel, pecador, desviado e tão punido, em termos próprios de um marido magoado que graciosamente perdoa a esposa: "Não tenha medo; você não sofrerá vergonha [...] Você esquecerá não se lembrará mais da humilhação de sua viuvez [i.e., o período da alienação de Israel, separado de Iavé, na Babilônia, durante o cativeiro]. Pois o seu Criador é o seu marido; o Senhor dos Exércitos é o seu nome; e o Santo de Israel é o teu Redentor [...] O SENHOR chamará você de volta como se fosse uma mulher abandonada e aflita de espírito, uma mulher que se casou nova apenas para ser rejeitada, diz o seu Deus." Is 54.4-6. Em outras palavras, o compromisso forte e emocional de um bom marido para com sua mulher, a quem ele ama, apresenta semelhança (embora de modo frágil e finito) com o amor eterno e inexaurível que Deus dedica a seus redimidos (cf. Ef 3.18, 19). Essa virtude é expressa com maior profundidade na passagem clássica de Efésios 5.21-27: Sujeitem-se uns aos outros, por temor a Cristo. Mulheres, sujeite-se cada uma a seu marido, como ao Senhor, pois o marido é o cabeça da mulher como também Cristo é o cabeça da Igreja, que é o seu corpo do qual ele é o Salvador [...] Maridos, ame cada um a sua mulher, assim como Cristo amou a igreja e entregou-se por ela para santificá-la, tendo-a purificado pelo lavar da água mediante a palavra, e para apresentá-la a si mesmo como igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou coisa semelhante, mas santa e inculpável.
É dessa perspectiva, portanto, que contemplamos Cânticos dos Cânticos e suas imagens líricas, emocionais, um poema composto a fim de despertar sentimentos de uma sinfonia do amor criada por um gênio da música e executada por uma orquestra magnífica. Temos aí a descrição comovente do romance arrebatador de Salomão com uma jovem humilde, extremamente linda, vinda do campo, talvez de Suném, no território de Issacar (a LXX traduz "sulamita", a palavra que está em 6.13, como sounamitis, ou "sunamita"). É possível que originalmente ele a tenha observado vestida como uma pastora e que a houvesse conhecido quando a moça cuidava do rebanho em algum campo das redondezas.
É bem possível que no início de seu reinado, pelo menos, Salomão tirasse algum tempo, interrompendo os deveres oficiais para desfrutar de um descanso no campo (aparentemente numa propriedade em Baal-Hamom - 8.11). Ele preferia cuidar de ovelhas, vinhas e flores, em vez de desejar golfe, pesca, barcos ou tênis (que fazem a delícia dos modernos executivos). Assim, ele teria passado algumas semanas fora de Jerusalém, incógnito. (Alguns eruditos preferem apresentar aqui um jovem camponês apaixonado, cuja profissão era o pastoreio de ovelhas, que viria a ser o rival bem-sucedido do rei, ganhando o afeto da moça; todavia, é bastante difícil sustentar essa ficção, por causa do texto em si. É muito improvável que Salomão, o autor do texto, o tivesse escrito como memorial de sua derrota amorosa.)
Quando Salomão estabeleceu uma amizade com a jovem pastora, viu-se inesperadamente apaixonado por ela. E parece que ela também se apaixonou por ele, antes de descobrir-lhe a verdadeira identidade. Ao tomar-lhe a mão em casamento, ele levou-a consigo para Jerusalém, para o esplendor de sua corte. Lá essa jovem enfrentou sessenta outras esposas e oitenta concubinas que já constituíam o harém do marido. Foi naquele palácio que ela se sentiu diminuída, por causa de sua pele morena, fora de moda, enegrecida pelo sol, em razão de sua vida ao ar livre e das atividades a que seus irmãos a obrigaram (1.6).
As memórias que Salomão escreveu acerca desse episódio profundamente significativo de sua vida, no qual ele experimentou o mais autêntico relacionamento de amor que já conhecera, ficaram registradas para nós de modo espantosamente belo; ele deveras foi um poeta talentoso. Embora esse polígamo mal orientado se houvesse dedicado de corpo e alma à auto-indulgência, motivo pelo qual jamais alcançou as sublimes alturas a que essa jovem encantadora tentou elevá-lo, Salomão nos deixou essa expressão inigualável da glória de um amor humano que reflete o incomparável amor de Deus. "Nem muitas águas conseguem apagar o amor; os rios não conseguem leválo na correnteza. Se alguém oferecesse todas as riquezas da sua casa para adquirir o amor, seria totalmente desprezado". (8.7).
O poeta não seguiu uma ordem estrita, nem cronológica, ao produzir seu poema; antes, percebe-se a técnica emocional do clamor violento da consciência envolvendo os oito capítulos do livro. Lembramo-nos da técnica de flashback de certas novelas televisivas ao ler a história desse amor: cenas do passado freqüentemente interrompendo o fluxo do presente. Se mantivermos em mente as linhas mestras e as pressuposições delineadas acima, os elementos desse romance se entrosam de modo coerente e convincente. Tente outra vez, caro leitor: é possível que você acabe gostando! E, por favor, tenha em mente, quando estiver lendo passagens como 4.1 -5 e 7.1-9 que quando uma mulher, quer seja bonita, quer não, ama ao Senhor, repete-se aí a obra-prima de Deus, o supremo artista. A beleza física da sulamita apenas simboliza, de modo bem adequado, a beleza espiritual do templo do Espírito Santo, a noiva de Cristo, a Igreja. Todo crente se transforma na habitação da terceira pessoa da Trindade. O ponto de vista da jovem, como mulher, encontra expressão igualmente eloqüente em 2.3-6 e 5.10-16, ainda que o leitor do sexo masculino possa não se sentir emocionalmente sintonizado para reagir a tais passagens da forma adequada, tal qual uma mulher reagiria.
Cântico dos Cânticos serve de lembrete a todos os crentes de que Deus se regozija em sua obra eterna e sabe como revesti-la de emocionante beleza, merecedora da mais completa apreciação. No entanto, junto com nossa fervorosa devoção que reconhece tudo o que Deus fez de modo tão lindo — uma paisagem, o céu, o mar, as árvores majestosas, as flores encantadoras e até mesmo as glórias e encantos passageiros do amor humano — jamais devemos nos esquecer de dar toda honra e louvor aquele que os fez. Precisamos sempre exaltar o Criador acima de sua criação e de suas criaturas.
Extraído da "Enciclopédia de Temas Bíblicos"
De Gleason Archer
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